sábado, 8 de setembro de 2018

Guia prático para sobreviver às eleições de 2018


Guia prático para sobreviver às eleições de 2018



1 – Birra não ganha eleição

Aliás, birra não ganha nada. A birra, por si só, já é uma derrota. Espernear na defesa de um candidato contra todos os fatos e argumentos lógicos que mostram que ele não é exatamente a melhor alternativa é pura paixão. Então convém evitar discussões “neutras” ou tentar impor suas preferências aos outros. Falando nisso:


2 – Toda imposição é uma violência

Quando o pessoal da Península Ibérica chegou nas “Américas” e impôs seu european way of life e seu jeito de ver o mundo e, com isso, dizimou a cultura, a ciência e os conhecimentos de povos milenares, o mundo inteiro perdeu. Inclusive os próprios europeus. Querer impor qualquer ideia ou comportamento num universo em que a dúvida é traço de sabedoria é… bem, é no mínimo ausência de sabedoria.


3 – Sempre, às vezes, nunca

Sabe a regra dos cotovelos à mesa? Pois bem, existe uma regra parecida para debates e afins. Falar e ouvir, na mesma proporção, é sempre bom. Iniciar um assunto de política, às vezes, pois depende da hora e do lugar. Mas usar vocativos pouco respeitosos, nunca – e presta atenção, nunca – é legal. Chamar o interlocutor de burro ou de idiota pode parecer tentador em caso de discordância ideológica ou política, mas, não importa o motivo, se isso acontecer, o errado será você. E quem estará fazendo papel de idiota também.


4 – Armas químicas e poemas

Tem uma música do Legião Urbana (e não do Engenheiros) que diz assim:

Existem muitos formatos
Que só têm verniz
E não tem invenção
E tudo aquilo contra o que sempre lutam
É exatamente tudo aquilo que eles são

É interessante, porque é algo que acontece com certa frequência. Quem luta muito por uma causa, por vezes, a considera tão importante a ponto de acreditar que os fins realmente justificam os meios. É um vale tudo. Passa a lutar com as mesmas armas do adversário e com a mesma coragem para tomar medidas drásticas e cruéis. Pela revolução ou contra ela, não importa.

Isso é incoerência. Porque as injustiças são todas iguais, independentemente do que as motivou.

Obs: só por curiosidade, na sequência da música, o Planeta Terra é invadido por marcianos. Talvez faça sentido.


5 – Ser a favor e não contra

Porque ser contrário a um movimento também é fazer parte dele, como disse Pablo Picasso. É outra face da mesma moeda, para usar um clichê. Quando se é contra, só se vai repetir o que já existe, o que já foi feito e, provavelmente, deu errado. Só que, agora, ao contrário. É como a mão direita que, no espelho, é a esquerda, ou o oposto. E o exemplo com “direita” e “esquerda” não é coincidência.

Salvo engano, na época do Império diziam que não tem nada mais parecido com um conservador do que um liberal no poder. Bons tempos aqueles.


6 – 18+

Não são nudes. É maturidade. Para certos tipos de discussão e de argumentos, sobram poucas respostas, senão o choro ou o silêncio. Dizer que seu candidato levou uma facada mas meu colega de partido levou um tiro e ninguém se indignou é triste, bem triste. Existem algumas fronteiras que existem para não ser ultrapassadas, como a violência. Ou justificar violência com violência, como se fosse uma discussão de crianças do primário.

Vale o mesmo para desejar a morte do adversário (matá-lo, então, nem se fala). Nesses casos, a democracia perde o sentido. E os gregos não tiveram todo aquele trabalho para nada.


7 – Uma dose de bom senso e mais uma pra acompanhar

Se o Tim Maia lendo, atingiu o bom senso, não é conosco que vai ser diferente. Ler é muito importante. Acompanhar notícias, se atualizar e se informar. Estudar como as coisas funcionam. E depois duvidar de tudo o que aprendeu e começar de novo. Sem nunca ter certeza absoluta de nada, o que, aliás, é um pleonasmo horrível. Afinal, como dizia René Descartes, aquele francês teimoso que nos legou seu divertidíssimo plano cartesiano:

O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que aquele que têm.


8 - Ponderar como se fosse um libriano

Não é à toa que as eleições são em outubro, mês do signo de libra. Tenho certeza que a Justiça Eleitoral pensou nisso ao definir essas datas. É muito importante por tudo numa balança e ponderar os prós e contras, ter ciência das vantagens de suas escolhas, mas também do que será sacrificado por causa delas (porque algum sacrifício haverá, não se iluda).

Mas, quando chegar a hora, tenha um pouco mais de atitude do que a maioria dos librianos. Vote, sem medo. Seu voto tem o mesmo valor do de qualquer outra pessoa e a democracia existe para isso. Não se esqueça dos gregos.


9 – Neutralidade é para sabonete

Se tem uma coisa que quem viu o último episódio de Sense 8 aprendeu foi que a neutralidade, em tempos de injustiça extrema, não é neutralidade, mas cumplicidade. Não sei se chegamos ao ponto de viver tempos assim, mas não estamos longe. Ao que parece, uma parte das pessoas perdeu o medo de falar aberta e publicamente que certos tipos de gente têm que morrer ou ser privada dos direitos mais elementares: a liberdade, a busca pela felicidade e a possibilidade de amar e constituir uma família. Além da própria vida, claro.

Nesses casos, talvez seja importante se posicionar. Com respeito, claro, sem esquecer os pontos anteriores.



domingo, 29 de abril de 2018

(R)emendando os pedaços

R(e)mendando os pedaços



Tikun olam é uma expressão em hebraico que significa “reparar o mundo”.

O povo hebreu acredita que, apesar de Deus ter criado o mundo bom, deixou espaço para que nós o aperfeiçoássemos.

Então o tikum olam. Nós estamos aqui para melhorar o mundo.

Mas nós também somos mundo. Somos porque estamos nele e dele fazemos parte.

Melhorar o mundo significa tornar nós mesmos melhores.

A Cabala judaica, que entende a criação de forma mística, acredita que a Luz Sagrada estava contida num recipiente que se quebrou.

Por isso, para a Cabala, cabe aos homens tikum olam: remendar esses pedaços e reparar o universo.



Quantos não se despedaçam ao longo a vida. E quantas vezes.

Como o vaso da criação, também não conseguimos guardar a Luz Sagrada. Porque ser bom e justo todo dia exige uma grande disposição. E, por vezes, a gente só está cansado de não dar certo. 

Ou quando alguém de fora nos despedaça por dentro. As traições, o abandono, a solidão. Mas também a fome, a opressão e a dor.

Tudo isso dói. E a dor quebra. Espedaça.

Reparar o mundo significa, necessariamente, começar por consertar nós mesmos. Assumir que não somos nossos erros. Nem a vida pode ser resumida ao mal que nos fizeram, como se se tratasse apenas disso.

Eu queria que ninguém penasse por nada.

Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você”.

É verdade. Mas também é verdade que nós sofremos, de fato, e que tentar entender isso é ainda pior.

Por que não eu?” talvez seja uma pergunta mais válida do que: “por que comigo?”

Eu queria que nenhum de nós sofresse. Mas o mais prático é ver na incompletude um espaço para trabalhar e melhorar.

Remendar o universo também tem que significar o conserto dos outros. Não com julgamentos, carpinteiros não são juízes. Com paciência. Pode ser, inclusive, que um pedaço de que precisamos esteja no outro, afinal, somos parte do mesmo mundo.

Não há como se consertar sem se relacionar, por mais que tenhamos medo de nos quebrar ainda mais. E há esse risco, mas temos que assumi-lo. Do contrário, não se faria jus ao privilégio de estar aqui.

Eremitas talvez sejam apenas pessoas egoístas e covardes. 

A exclusividade é falha. Não há problema exclusivamente seu, nem meu. Se fazemos parte do mesmo conserto, a todos tem que interessar a reparação.

A Cabala, mais atualmente, também entende que tikun olam é promover a justiça social e cuidar do planeta. Justiça, compaixão e paz, dizem, são seu tripé de valores e práticas.

Então, ter justiça, compaixão e paz. Cuidar de mim, dos outros e do mundo. Todos os três ao mesmo tempo. Todo o tempo.

Importar-se. Não ser indiferente. Não se alienar, que é se transferir para fora da realidade, mas se inserir nela. E trabalhar para consertá-la.

Porque, ao cabo, o inverso também vale. Ao cuidar do planeta e dos outros, também cuido de mim.

Somos pedacinhos do mesmo vaso.



Imagem: chabad.org

domingo, 1 de abril de 2018

490 vezes eu me perdoei

490 vezes eu me perdoei 




Aproveitando a deixa da Páscoa, relembro o diálogo entre Pedro e Cristo, narrado no evangelho de Mateus, em que o apóstolo pergunta:

- Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes? 
- Não lhe digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete, respondeu Jesus. 

Além de 70 x 7 ser igual a 490, que é um número bastante grande e, com isso, acredito que Jesus queira dizer "perdoe até perder a conta", há todo o simbolismo bíblico, em que o número sete representa o infinito. Ou seja, Jesus realmente manda que a gente se esbalde de perdão. 

Esse perdão, eu penso, não se refere apenas ao ato de relevar os vacilos dos outros para conosco, mas também de desculpar nossos próprios vacilos. Inclui, portanto, o autoperdão, que não é tarefa fácil. Pelo contrário. A capacidade do ser humano de sentir culpa por seus erros e fracassos, bem como de se cobrar pelos sucessos que não alcançou, durante anos - talvez pela vida inteira - é grande. Enorme. 

A culpa é um elemento reforçado por séculos de tradição religiosa e jurídica, que divide a Humanidade entre inocentes e culpados, o joio e o trigo. Mas também é um sentimento de todo inútil, incapaz de nos fazer pessoas minimamente melhores, pois não conduz à reflexão - e, por consequência, à evolução - mas tão somente a um estado de apatia. Ou de desespero. Quando alguém se sente culpado, só o que consegue fazer é se autoflagelar. Trava-se. E, de tão preso a esse estágio, por só pensar nisso, o culpado volta a si mesmo de forma introspectiva e egoísta. Passa a se sentir a própria vítima da conjuntura, o que é um paradoxo. 

Mandela, depois de 27 anos preso, quando ficou livre, viu no perdão - na reconciliação - um requisito para a paz em seu país. Ele acreditava que, sem perdão, não haveria progresso. Bert Hellinger, o "pai da Constelação Familiar" que, durante anos, também viveu na África do Sul do "apartheid", foi mais longe, ao dizer que não há progresso sem culpa. Porque, para Hellinger, a necessidade de permanecermos inocentes durante toda a vida é um erro que nos acovarda. Sentiremos culpa, que é um processo natural do crescimento. Sentimos culpa quando saímos da casa dos nossos pais e quando temos nossas pequenas vitórias, mas uma pessoa querida está mal. Mas devemos buscar ser felizes ainda assim, mesmo com culpa, diz Hellinger. 

E já que estamos falando de pessoas legais, como Jesus, Mandela e Bert Hellinger, também lembro da escritora Clarice Lispector, no excerto de um de seus textos de que mais gosto:

<<Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou a minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. 'O amar os outros' é tão vasto que inclui até o perdão para mim mesma com o que sobra.>>

É assim: perdoar é um ato de amor. Amor aos outros e a si próprio. Primeiro, pois quando nos perdoamos, ficamos livres, para viver e amar. Depois, porque apenas quando aprendemos a exercer o autoperdão, desenvolvemos a capacidade de perdoar plenamente quem nos fez mal. 

Pois de que forma eu estaria sendo honesto, se perdoo os outros, mas não a mim mesmo?

Há um pequeno exercício que eu gosto de fazer, comigo e com os outros, em certas situações que envolvem uma culpa velha... 

<<Você cometeu um erro e se arrepende. Não consegue se desculpar por ele. Mas, agora, imagine o contrário. Uma pessoa querida, de quem você gosta muito, te procura para conversar. Conta que vacilou. Vacilou com você mesmo, por exemplo. Você seria capaz de perdoá-la? Mais ainda, você a encorajaria a SE perdoar? Se a resposta for sim, faça o mesmo consigo.>>

Não tem por que ser diferente. Não que seja fácil. Não que eu consiga fazer isso e viver em paz, todo o tempo. Mas eu escrevo para isso mesmo. Para me lembrar das coisas mais importantes. 

No mais, também dizia Leminski, o poeta curitibano do bigode engraçado:

nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender

que só o erro tem vez


De forma que eu penso: quem sou eu para contradizer esse galera toda?









domingo, 18 de março de 2018

Uma coisa mais linda que o mundo e maior do que o mar


Uma coisa mais linda que o mundo e maior do que o mar

Quando eu era criança, minha mãe tinha uma loja. Uma vez, chegou uma mulher lá, e, para puxar assunto, me perguntou:

- Qual seu signo?
- Libra (eu nem sabia bem o que era signo)
- Ah, o meu também, olha que coincidência. Você é ansioso?
- Ansioso? Manhê, eu sou ansioso?

Nunca tinha ouvido essa palavra, até então. Ela me explicou, meio por alto. Eu cheguei a conclusão que sim, eu era. E nunca mais parei de pensar nesta palavra: ansiedade.

*****

Existem certos acontecimentos que me (nos) fazem repensar a vida toda. Por exemplo, formaturas, casamentos e, claro, velórios.

Acho que os três são, de certa forma, rituais e, se lembro bem, a função dos rituais é marcar a passagem de fases da vida. Então, me parece humano que acabem por induzir - ao dono da festa e aos convidados - a esse balanço do rumo que nossa vida tem tomado.

E, nesse balanço, pensamos na vida inteira que podia ter sido e que não foi, como disse Manuel Bandeira. A gente lembra da infância, quando queria ser artista e mudar o mundo, mas agora, com quase trinta anos, aceitou o que tinha, o que dava para fazer. Não é bom, mas poderia ser pior.

Então, de novo, vem a ansiedade, coisa difícil de definir.

*****

Ela tem diversos motivos. Na verdade, qualquer coisa pode causá-la, depende da situação. Os efeitos, contudo, em geral, são os mesmos: o sentimento de inquietação e insatisfação, a espera por um futuro próximo ou distante, que não necessariamente existe. O tremor, o suor e o coração disparado. É desconfortável.

Tem muitas causas, ou, às vezes penso, não tem nenhuma, na verdade. É coisa com que o indivíduo nasce, como uma verruga na alma.

O que talvez pode ter são diversos gatilhos que a ativam. Mas a ansiedade, em si, é a saudade da plenitude que um dia quiçá tivemos ou a espera de um futuro que não se sabe se chegará, que não sabemos se sequer existe. Nesse mundo ou em outro. 

Como o Pedro Pedreiro, da música do Chico, que estava sempre esperando: a festa, a sorte, a morte e o dia de voltar pro Norte. Mas que, sem saber, lá no fundo, talvez Pedro esperasse uma coisa mais linda que o mundo e maior do que o mar.


*****

Uma coisa estranha. Sou ansioso. Muito. Mas alguns lugares ou situações me acalmam. Estar em meio à natureza é uma dessas situações. 

Outra, é me sentar em salas de espera. 

Não sei explicar. Talvez, ali, eu esteja fazendo o que já faço, naturalmente, na maior parte do meu dia. Esperando. Então fica tudo bem.


*****



Certa vez, um velhinho muito sábio disse que, essa angústia (que é a ansiedade), é o desejo de encontrarmos a divindade, com quem, e apenas assim, seremos, de novo, completos. Não nos faltará nada.

Voltar para onde viemos. Seria o céu (ou o mundo das ideias de Platão, para os ateus) esse lugar mais lindo que o mundo e maior do que o mar?

Não dá para saber, não por enquanto.

Sobre isso, tem aquela famosa carta de São Paulo aos Coríntios (que virou até música), mais conhecida por seu  começo: ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos...

Dela, contudo, o que mais me chama a atenção é o final:

 Agora vemos como em espelho
e de maneira confusa;
mas depois veremos face a face.
Agora o meu conhecimento é limitado,
mas depois conhecerei
como sou conhecido.

Nossa percepção é muito limitada, sobretudo acerca de nós mesmos. Não conhecemos o som da nossa própria voz, a não ser que a ouçamos numa gravação - o que sempre causa estranhamento. 

Nos conhecemos pouco. E o medo é um sentimento derivado do desconhecimento. A ansiedade também é, pois é imprecisa. 

*****

Campo de Trigo com Corvos, de Van Gogh

A ansiedade, portanto, é esse amontoado de especulações. Chega a ser tratada pela psicologia e pela psiquiatria. Tratada, não curada. Todos os remédios prescritos para pessoas ansiosas só conseguem combater seus sintomas. Jamais ela, em si mesma. 

Talvez porque não seja doença. 

Talvez esteja tudo bem, em sermos e vivermos assim. E, no final - nesse mundo mesmo, quando a vida inteira passar diante dos olhos, ou no outro plano, quando nos vermos face a face - entenderemos, por fim, que está tudo bem. 

Foi como deveria ter sido.

Vivemos como deveríamos ter vivido e somos, finalmente, a melhor versão de nós mesmos. 






segunda-feira, 5 de março de 2018

Pilar e Humberto


Pilar e Humberto



Parreiras do Castelo Pittamiglio, que continuam produzindo uvas desde a construção do edifício. 

A Pilar tem agora 61 anos e é camareira no mesmo hotel há 22. Tem traços bonitos, mas a pele bastante envelhecida. A voz muito rouca explica o motivo: dois maços de cigarro por dia e um deles só pela manhã.

Quando ela tinha 15 anos, seu país sofreu um golpe de Estado seguido por uma ditadura, que perseguiu, de diversas formas, todos que eram considerados inimigos da pátria. Pilar era uma inimiga da pátria, porque era comunista e participava dos grêmios estudantis e das reuniões do partido. 

Por muitas vezes, a polícia tirou-a de dentro da sala de aula, na escola onde ela estudava, para amedrontá-la. Mas, porque era menor de idade, não tiveram coragem de prendê-la. Ao contrário de seu irmão mais velho, que já fazia faculdade. Foi preso e nunca mais se soube dele. A família de Pilar, depois de muitos anos, teve indícios de que ele foi executado e seu corpo jogado, de um avião, no fundo do Rio da Prata. A mãe deles sofreu por isso até o fim de sua vida. 

Pilar se casou aos 17 anos e, com 23, grávida, foi abandonada pelo marido. Diz que vive melhor assim, sozinha. Tem dois empregos e faz trabalho voluntário numa escola de crianças com deficiência, todos os dias, sem exceção. E ainda participa das reuniões do partido comunista, onde toma chimarrão, discute política e planeja as próximas eleições do país. 

Alguns anos antes disso, viveu, na mesma cidade, um engenheiro, arquiteto e alquimista chamado Humberto. De família pobre e filho de um sapateiro, teve, contudo, a oportunidade de se formar e ajuntar uma grande fortuna, com mais de 400 propriedades. Dentre elas, dois castelos, um residencial e o outro de veraneio. 

O castelo em que morava fica em frente a praia. Sua fachada sugere a proa de um barco, simbolizando que a vida é uma viagem. Por fora, parece ser uma construção minúscula. Por dentro, é um verdadeiro castelo, com 1.300 metros quadrados, 23 torres e 54 salas. Isso para significar, segundo o próprio Humberto, que nem tudo o que parece é, nem tudo o que é parece

Também há diversas portas que não dão a lugar nenhum, exceto uma parede de tijolos e escadas que terminam suspensas no ar. É para lembrar que certos caminhos não levam a nada e não temos outra opção, exceto voltar e recomeçar. Aliás, a única alternativa é ficar batendo de cara com a parede ou cair escada abaixo.

 Castelo de veraneio de Humberto. Será que ele conseguiu inventar transmutar metais em ouro, para ficar assim, tão rico?


Humberto era solteiro e não teve filhos. Em seu testamento, deixou todas suas propriedades para instituições filantrópicas e para o Estado. Seu castelo, o residencial, foi legado à Prefeitura, com duas condições: que fosse utilizado com fins culturais, e que lhe fosse restituído, por ocasião de seu retorno. 

Quando ele morreu, Pilar tinha 8 anos de idade. Mas eles nunca se conheceram, nem souberam, até então, um da existência do outro. Por causa da diferença de idade, mas, sobretudo, imagino, porque pertenciam a realidades pouco afins:

  • Uma moça pobre que sofreu de diversas formas, desde muito cedo. E que nunca morou num castelo;
  • Um cara genial, milionário e meio excêntrico, que gostava da solidão e tinha tempo e dinheiro para buscar formas de transcender (material e espiritualmente). 

Cada um, então, preocupado com o contrário do egoísmo. Alteridade. Cada um dos dois com sua própria história, que, a princípio, parece não ter nada a ver uma com a outra, mas, no fundo, converge para um mesmo fim, que é a vontade (e esperança) de ser feliz e de encontrar soluções. Aquela vontade que a gente tem de que tudo dê certo

Mas pensamos e agimos de formas diferentes. Porque somos diferentes. Temos nossas idiossincrasias, palavra de que eu gosto muito e que quer dizer, mais ou menos, o comportamento peculiar que cada um tem devido às particularidades de sua história pessoal. 

Se, na época da Pilar, o grande contraste era entre os comunistas e os reacionários, hoje há muitos, mas muitos outros. Acho que não precisa dar exemplo.

E o contraste parece se materializar em muros, grades, gritos. Preconceitos. Em acusações de ambos os lados. 

Mas não precisa ser assim. Não somos inimigos, não uns dos outros. E, sem dúvida, o que nos une é muito mais forte do que o que nos separa e afasta.

Eu não sei se a Pilar e o Humberto teriam sido amigos, se tivessem se conhecido. Mas desconfio que duas pessoas tão incríveis, cada uma do seu modo, fariam coisas igualmente incríveis, trabalhando do mesmo lado. 

Não somos inimigos.

E se, mesmo assim, o impulso de brigarmos uns com os outros ainda for muito forte, paciência. 

Os torneios de truco e as partidas de War estão aí para isso.

Post Scrpitum: enquanto eu escrevia esse texto, tive certa dificuldade em não usar metáforas bélicas, como do mesmo lado da trincheiralutamos uns pelos outros, ou alguma outra como guerra, batalha, combater, etc. Essas analogias me incomodam. A vida não é uma guerra, nem estamos sempre lutando (ou pelejando, como dizem aqui onde moro). Prefiro pensar que é uma caminhada. Uma viagem. 









segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O meio-termo é para todos


O meio-termo é para todos





Sou libriano, o que significa, pelo que me disseram, que na manhã em que eu nasci o Sol estava próximo a constelação de Libra, para a qual alguém olhou um dia e achou parecida com uma balança. Daí porque dizem que é o signo do equilíbrio, ou, pelo menos, daqueles que ponderam entre os extremos para encontrar a justa medida.

Também sou formado em Direito, por razões tão confusas quanto amontoados de estrelas que acabaram virando figuras de verossimilhança controversa. De qualquer forma, o símbolo do Direito também é uma balança, porque, em teoria, está sempre buscando o equilíbrio, palavra que, por acaso, significa igual medida. Igualdade. 

Por fim, e talvez seja meu terceiro e último argumento, Aristóteles, aquele professor de filosofia que morreu há muito tempo, dizia que a virtude é o que se encontra bem no meio, entre as faltas e os excessos. Mais uma vez,  justa medida, como ele mesmo chamava. 

Por isso, enfim, o meio-termo. Que não deve ser confundido com mediocridade (nem por mim mesmo, bom lembrar), mas como um privilégio que nós temos de ser bem assim, como somos: normais. Mas dá para ser anormal? Creio que não, pois não há nenhuma norma válida que diz como nós devemos ser. Tampouco precisamos aceitar que nos digam.

Como não ser o cara mais bonito do mundo, nem o mais inteligente, nem o mais feliz. Ser de classe média (risos). Mas, ainda assim, ser objetivamente um cara, estar vivo e isso bastar, na maior parte do tempo. 

Certas pessoas, como o pessoal importante do Direito, Aristóteles, ou a galera que inventou o zodíaco, conseguem, de alguma forma, fazer coisas que chamam a atenção de muita gente, por muito tempo. Os (muito) ricos e as celebridades também, por exemplo. E desconfio que a maioria de nós sente um desejo de imitá-los, de fazer algo fabuloso e ser lembrado para sempre. 

Contudo, não é isso que acontecerá com a maioria. Pelo contrário...

Mas não sei se isso é importante. As pessoas que mantêm o mundo funcionando são anônimas. Como quem vai acordar amanhã cedo para tirar o leite que vou tomar no meu café. E, definitivamente, ainda que não saiba seu nome, essa pessoa será, para mim, muito mais importante do que Aristóteles. E eu gosto de filosofia. 

Essa teoria fajuta também se aplica ao que escrevo. Não é questão de ser um grande escritor ou ter ideias brilhantes. Escrevo porque gosto e faz parte de mim. E todos nós temos o direito de fazer o que gostamos, na medida em que conseguimos e independentemente da excelência que alcançaremos. 

Inclusive porque, receio, até mesmo a excelência é um meio-termo entre a perfeição e o total fracasso. 

Há várias pessoas muito inteligentes que tentaram nos explicar o que é certo. Sartre disse que correto é ser autêntico, fazer as próprias escolhas. Dworkin, por sua vez, falou que certo é viver bem, ou seja, é o dever que temos de fazer da nossa vida algo valioso, respeitando, sempre, as escolhas dos outros sobre o que eles próprios consideram valioso para si. 

Gosto disso. De alguma forma, me dá coragem. De ser quem eu sou, ainda que isso significa estar no grande meio-termo do universo. 

Que sirva para todos, de alguma forma. Jamais como comodidade com o lugar que ocupamos. 

Primeiramente, como gratidão, pelo que conquistamos e pelo que evoluímos. Nos comparando com outras versões de nós mesmos (e nunca com os outros). 

E, depois, de maneira a tornar sempre melhor nosso meio-termo. Na (im)perfeição ou na utopia. Que significa lugar que não existe. Mas, talvez, seja bom caminharmos, olhando para esse lugar (e ter a capacidade de ver um lugar lindo e inexistente já me parece mágico). Não foi Galeano que disse que é exatamente isso que nos mantém caminhando? 

Pois então.